XX - XY

terça-feira, julho 26, 2005

Post-Scriptum in Decadent Andato






-Oh, Vida.

Será muito o tempo que separa o nosso reencontro?

As vezes penso nisso. Não sempre. Às vezes. Serão muitos os segundos que ainda terão que se perder antes que te possa fazer rir outra vez?

Os vizinhos do andar de cima, estudantes universitários, haviam decidido formar uma banda de trash metal, com ensaios diários até às 21h50.
No 5º B, um andar abaixo, um recém casado casal, ainda não tinha aprendido a viver em comunhão. A mais recente discussão envolvia louça suja, roupa interior e boleias para o trabalho.

A Senhora Otília, empregada de limpeza, contava com evidente desdém, as peripécias dos residentes do prédio, dando aquele toque “Hollywoodesco” que só ela sabia. Era realmente um estranho prazer ouvir aquelas histórias, que mesmo à quinta “Realmente agora não tenho tempo...”, me prendia vezes sem conta à voz rouca e baixa da mulher, que parecia saber tudo sobre toda a gente.

Na porta ao lado uma escultural mulher, ao que parecia funcionária pública, alimentava umas quantas fantasias de outros tantos residentes do prédio.

A mim, vizinho do lado, já por várias vezes havia sido solicitado a intervir em pequenos afazeres domésticos. Era uma espécie de técnico de trazer por casa, para o que desse e viesse. O livro de bricolage que me tinha dado no Natal confirmava que ainda tinha lugar no seio do seu lar. Era como que um compromisso inaudível ou então um “Vai lendo isto porque realmente precisas de uns conselhos.”

Já me senti tentado a convidá-la para jantar, mas a possível nega era o suficiente para me demover de tal ousadia.

O carteiro, um puto de vinte e poucos anos, nunca acertava com as caixas correctas e não poucas as vezes, era frequente eu perder 10 minutos de manhã a distribuir correctamente o correio. Acho que anda sempre ganzado, pelo menos a julgar pelas sonoras gargalhadas que disparava sempre que o tentava alertar para os erros que cometia ao distribuir a correspondência. “Pode ser conjuntivite”, lembro-me de ter pensado, quando o vi, ao longe, acertar com a minha publicidade na caixa da vizinha.

No rés-do-chão, a Pastelaria “Quente i Bom” orgulhava-se de possuir os rissóis de bacalhau mais frescos da cidade. Eu reservo-me a tecer comentários quanto à validade dos ingredientes dos ditos, mas a tosta de queijo e o café grande, aos Domingos de tarde pareciam-me sempre divinais.

Os proprietários do café, um casal venezuelano de cinquenta e muitos anos, há muito que tinham como clientela as mesmas pessoas e por isso não se preocupavam muito em manter a qualidade de outrora. Não que fosse uma tasca, longe disso, mas o primor a que nos tinham habituado quando abriram o, na altura, “Snack Bar Caracas”, há muito que desaparecera. Se bem me lembro coincidiu com a batalha legal pelo nome que, diziam, era comum a outros 20 estabelecimentos. Falta de imaginação latina ou preguiça, facto era que pelo menos duas vezes, já me tinha cruzado com bares de igual nome.

Foi ali que a conheci.

Tarde de Sábado, projecto para entregar na Segunda, frigorífico vazio e uma total falta de vontade ou outra coisa qualquer de fazer uma viagem até ao supermercado que ficava, ironicamente, a dois quarteirões de distância.

A habitual merenda reforçada para estes casos de emergência doméstica, consistia de uma sandes de queijo em pão de água, que a Sr.ª Cristina blindava com umas generosas três ou quatro fatias, um chocolate quente e em casos mais extremos de um bitoque.

Tinha-me ficado pela “sandocha” de queijo, não me lembro bem porquê.

Sentada a meu lado a ler uma revista de mexericos daquelas que ninguém gosta de comprar mas todos gostam de ler estava a mulher que pedia exactamente o mesmo que eu. E pediu antes, logo a hipótese de sugestão visual ou auditiva caía por terra. Eu pedia sempre o mesmo.

Pareceu olhar para mim, distraída ou não e não retirou os olhos dos meus, o que sempre me deixou pouco à vontade. Não me recordo bem porquê nem como mas lembro-me de estar sentado na mesa dela a partilhar a nossa refeição e a discutir a vida de famosos, semi-famosos, pseudo-famosos e palhaços mediáticos de tal maneira que tínhamos que controlar as nossas gargalhadas.

Era irmã da minha vizinha, a tal do “Bricolage” e parecia partilhar de todos os atributos que faziam da irmã, minha vizinha do lado, a mais famosa inquilina do bairro.

A irmã nunca lhe tinha falado de mim e como logo depois descobri, eram as melhores amigas e confidentes, o que me renegava para um mero “gajo que dá jeito ter por perto.” Não podia ser bom.

A pensar em como acabaria aquela tarde e se acabaria na minha cama, somos surpreendidos pelo “metálico” do andar de cima a pedir umas “cervejolas” e a olhar fixamente para o decote delicioso e inspirador da minha companheira de mesa. Nem com a minha investida de olhar nem com o meu pigarreio o demoveram de literalmente babar para o “V” que habilmente se desviava das migalhas.

Só mesmo o som do saco cheio de frescas cervejas a bater no balcão o despertaram do transe hipnótico que, honestamente, já incomodava toda a gente.

- Foi muito agradável a sua companhia. Fique bem.

Levantou-se e dirigiu-se à caixa para pagar.

Foi a última vez que a vi. Mas ainda penso naquele sorriso magnético.

Existem momentos assim que nos marcam sobremaneira e que nos fazem pensar que se tivéssemos dito algo mais, ou prestado mais atenção ou ainda perdido aquela vergonha e entorpecimento estúpido talvez nunca mais fossemos os mesmo. Claro. É óbvio. Mas será que é assim tão óbvio? Será assim tão claro que em cada momento, em cada instante, em cada segundo da nossa vida, tudo o que fazemos repercute-se para toda a eternidade?

Pelo menos na minha gosto de pensar que sim.

Não que isso mude alguma coisa note-se, mas penso sempre da mesma maneira e por alguma razão, fica sempre algo por dizer, algo por fazer, algo que podia ter dito, algo que podia ter feito, algo que não devia ter feito ou algo que não devia ter dito. Sou assim e não vejo melhorias em todo este tempo, desde que me apercebi que era um parvo igual a tantos outros.

E muitas vezes repetia em silêncio, “Dei o meu melhor, não podia ter feito mais.”

E de todas essas vezes, passado alguns dias, algumas horas e às vezes alguns segundos, percebia que ainda tinha mais para dar.

Sábado de manhã é dia de limpeza. A Sr.ª Otília, uma cinquentona obesa com problemas de locomoção era um ser muito meticuloso e atrevido. Às oito e cinquenta já estava na minha cozinha a preparar um luxuoso pequeno-almoço que nunca partilhava comigo. Nunca lhe tinha dito que aquilo me incomodava solenemente, sempre na esperança de uma graça, um gesto de atenção, de um dia acordar com o cheiro a ovos e bacon, o pequeno-almoço servido na minha cama e só para mim. Trabalha cá em casa, faz agora 9 meses.

Não me lembro como é que a minha vida se tornou tão igual. A rotina a que já me habituei é tão igual a si mesma que já nem dou por ela. E apesar de ter consciência de que sou vítima da minha própria armadilha, mesmo quando tento fugir às garras da repetição, sinto a falta dela.

Tenho amigos que ao mínimo sinal de monotonia reinventam-se a si e ao que os rodeia de tal maneira que no fim, nada parece igual ao que era.

E ainda bem que assim era. Eu partilhava essas mudanças e era o suficiente para mim. Não que seja um velho ranzinza e acomodado, nada disso, mas as mudanças assustavam-me um pouco. Não no sentido literal, acho que no fundo sou demasiado preguiçoso para o que quer que seja.

posted by Mike at 7/26/2005 09:20:00 da manhã 0 comments