XX - XY

sábado, dezembro 04, 2004

Tarde demais...

-Às vezes sinto-me preso. Como se tivesse raízes. Como se fosse uma àrvore. Preso a algo que não percebo muito bem. Como se não pudesse mexer os pés.
Grito e as pessoas passam por mim, sem me ver. Como se fosse invísivel, como se não existisse. Os meus gritos acabam por suspirar.
-Às vezes sinto-me amado à medida que puxas fios de memória de mim. Como se de repente percebesse a merda do puzzle.
Se eu fosse um rei do tamanho do mundo e me lembrasse de tempos mais novos que eu, se o mundo me levantasse no topo de tudo. Se eu tivesse tudo, podia ter tudo, sem ganância nenhuma, se eu fosse o topo de tudo e do tamanho do mundo, no topo de tudo, levantar-te-ia nos meus braços? Se as memórias, mais novas que eu, moldassem o barro, tomando figura, se eu tivesse força para continuar, levando-te comigo, o que me restaria neste mundo?
Se eu tivesse tudo.
Até chegarmos ao castelo de areia amarela que se ergue no horizonte.
Fi-lo com toda a areia do mundo, juntei todas as conchas e decorei todo o castelo.

- Que palhaçada, pensou enquanto relia o que tinha escrito. Não vou a lado nenhum com isto. Castelo de areia? Conchas? -Riu-se- . Vou tentar outra coisa.

É meia noite. Dia de Natal. Sente-se uma agitação calma mas tensa na rua. Estão em casa com a família a partilhar um ritual qualquer.
-Eu não. Estou sozinho em casa.
Acende mais um cigarro e aumenta o volume da televisão.
Lembra-se de perceber o Natal. De sentir que era uma altura agradável.
-Agora é um dia como outro qualquer. Aproveito para descansar. E amanhã se me apetecer ainda me sento ao computador. Aproveito e acabo aquele trabalho.

-Não. Não vou escrever sobre o Natal. Não assim. Vou tentar outra coisa.

Lentamente levantou-o com os braços e segurou-o firmemente contra o peito.
Apanhou o saco que tinha preparado nessa tarde e protegendo a cabeça do filho com o capuz azul do fatinho que tinha comprado nessa tarde, abriu a porta.
Comprou-o na sua loja favorita e comprou-o porque naquela noite ia fazer frio.
- Eu voltei. Eu voltei bebé. Vim-te buscar. Não chores meu quiduxo, vamos já embora.
Ele não chorou. Sentiu-se confortável naquele colo desconhecido e não chorou.
Renata olhou uma vez mais para trás e fez-se à estrada. O táxi ainda esperava por ela, conforme lhe tinha prometido.
-E então? Tem tudo?
-...Como? Ah, sim tenho tudo...
-É seu?
-O quê?
-O bebé.
-O beb... Ah sim. É meu. É meu!
-Giro o puto. E então pa onde?
-Estrada Marechal Ângelo Fernandes.
-Ok... Noite fria esta, não?
-Pois. Tá frio.
E o tempo parou. Em suspensão perfeita, um equilíbrio perfeito entre o nada e o tudo. Entre o agora e o ontem.
Aquele olhar, espantado, esfomeado entre a mãe e o filho voou pela noite e pelo céu, em direcção à lua, nas asas brancas do vento suave. O silêncio mais forte que todos os sons e barulhos abraçou-os e deixou tudo para trás.
-Cá estamos. Dezassete euros e trinta.
-Guarde o troco. Muito obrigada. Boa noite.
Despediu-se e saiu do carro. Não fechou a porta e ali ficou a olhar para o filho, num estado de graça incomensurável.

-Desisto. Hoje não sai mesmo nada...
posted by Mike at 12/04/2004 07:40:00 da tarde

1 Comments:

Gajo, tarde de mais ou não li as cenas. " - Às vezes sinto-me amado à medida que puxas fios de memória de mim. Como se de repente percebesse a merda do puzzle." Foda-se... autch. Beijinhos** P.S - Eu acredito no acreditar.

11:59 da tarde  

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