XX - XY

terça-feira, janeiro 20, 2004

Romance da vida

Era madrugada e o bater das portas acordou-o. Como se de um sonho recorrente se tratasse, virou-se para o lado e tentou abafar o barulho dos gritos com a almofada. Era uma noite como outra qualquer. Como tantas outras.
Era comum acordar assim de sobressalto. Vivia entre a violência e o esconder das mazelas no dia seguinte. Apesar de criança e de pouco perceber do que se passava, não eram necessárias explicações para entender que algo estava mal, que não era assim que os Pais deviam agir. Mas adormecia e de manhã tudo estava bem. Era mais um dia.
A violência não o conquistava, renegava aquele sentimento porque no âmago do seu ser algo lhe desviava o crescer para paragens mais calmas.
Era dividido por entre a agressividade do pai e o alcoolismo da mãe. Não encontrava culpa nem desculpa para a sua vida, nem acreditava que algo iria mudar, como podia?

Os vizinhos sabiam, tinham que saber, e era comum convidarem-no para passar as tardes em sua casa, suado e cansado de mais um dia na escola, aquelas horas em que entrava num Universo à parte, ali era quem queria, era um miúdo normal, como todos os outros, e ali ficava em berço estranho, num ambiente mais calmo, como que um porto seguro, um abraço para a noite. E ninguém dizia nada, ninguem se atrevia a penetrar em território tão sagrado como o de uma família. Faziam o que podiam, e isso em muito apazigoou o espírito cansado e ferido de uma pobre criança que sem Amor ia vivendo dia após dia, na inocência que era sua por direito e que só mais tarde se mostraria magoada para sempre. Inalteravelmente magoada.

E dia após dia ia adormecendo com a esperança de que o amanhã trouxesse algo que mudasse aquela situação. E o amanhã nunca chegava, mas tornava a adormecer.

E cresceu, já não era um menino, agora entendia que algo de errado se passava, algo que não poderia mudar, não por falta de força ou capacidade, porque a força de uma criança magoada, que adormece a chorar, não pode ser menosprezada. Tinha força para mudar todo o Mundo, excepto aquela casa. Aí era impotente como a lágrima que lhe caía na face. E jurou sair dalí assim que lhe fosse possível...
posted by Mike at 1/20/2004 09:29:00 da tarde

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