XX - XY

domingo, novembro 20, 2005

1920 compressed theories on the evolution of purging


Sempre que esticava as pernas no jardim e olhava para a árvore que tantas vezes o tinha entretido quando criança, pensava que ia viver mais anos que ela.
Todos os anos no dia do seu aniversário, tomava o pequeno almoço e fazia-se à estrada. O proprietário do terreno já nem exigia aviso prévio. Era uma data que, como o Natal, não se discutia.
Chegava, estendia a toalha e passava ali um momento que nunca ninguém roubara desde que tinha sentido a calma que a sua árvore podia proporcionar.

Há exactamente 5 anos o momento que agora vivia tinha sido partilhado em doses exactamente iguais com a sua alma gémea. Lembrava-se de querer imortalizar aquele momento para sempre. Em silêncio, a olhar o céu, a tentar perceber que formas tomavam as poucas nuvens que apareciam por cima deles. A mão que gentilmente deslizava na relva molhada da noite, quase imperceptivelmente tocava a dela humedecendo os dedos até se deixar, cansada, aquecer na delicada e suave mão que a recebia.
E lembrou-se da exacta sensação que o fez naquele momento decidir gravar as iniciais dos dois na velha árvore que tantas vezes os abrigara. Era o seu sítio favorito.
Esculpiu com a destreza de mestre carpinteiro duas letras que se tocavam timidamente, alternando o olhar atento no canivete, com a absolutamente hipnotizante imagem dela deitada sobre o vigoroso verde da relva que agitada pela leve brisa, devolvia pequenas bolas de fogo, deixando as gotas de água brincar com os raios de sol.
E o Tempo tinha parado.
Fechou-se ao mundo. Não ouvia, não sentia, não cheirava. Naquele momento toda a vida do universo estava ali, à sua frente.
Fechou e abriu os olhos rapidamente e ficou ali, em pé, calado a olhar a mulher mais bonita que conhecera. Desejou que aquele momento nunca acabasse.
Sentindo os joelhos molharem ao ajoelhar-se suspirou: "Gosto muito de ti".

Olhou por cima do ombro e viu as duas iniciais já escuras, esculpidas na velha árvore, as mesmas que tinham acabado depois de terem feito amor naquela tarde de verão.

Fechou os olhos. Sentiu o doce aroma da pele que tantas vezes tinha acariciado, um doce perfume que o embriagava sempre que avidamente o tragava em longas e profundas inspirações.

Lembrava-se das longas conversas que tinham. Conversas sobre nada e sobre tudo. Lembrava-se de tantas vezes terem que terminar abruptamente de conversar porque distraidamente as horas avançavam pela madrugada deixando atrás de si outras tantas de risos, perguntas, desafios, declarações, sonhos, conselhos, reprimendas, mas principalmente um prazer enorme de comunicarem.

A sua tarefa de todos os dias, era agora, tentar recriar nas suas memórias todos os momentos que tinha passado ao lado dela, para descobrir a tarefa difícil que era. A explicação, para ele, era que a dificuldade de recriar e visualizar acontecimentos reais depois de filtrados pela magia de um sonho raramente correspondiam em detalhe à realidade.

E assim havia decidido viver a sua vida. Na busca constante de momentos que nunca mais voltariam mas que pela intensidade com que os revivia eram tão reais como as letras inscritas naquela árvore. E todos os dias durante anos, ia descobrindo e guardando pormenores e detalhes, que enriqueciam e pintavam de saudade a vida cinzenta a que se dedicava agora.

Tudo perdera a beleza e interesse. A luta era não deixar sair essa visão obscura de algo que se lembrava ser a maior dádiva de sempre. Viver.

E durante demasiado tempo nunca ninguém se apercebera da luta constante que era sair da cama e fingir ser alguém que não era. E de tanto e tão bem o fazer já quase que permitira que a mentira tomasse conta do seu ser. Tudo até o dia em que conheceu a pessoa que para sempre se iria dedicar a mudar a visão taciturna a que sem querer havia permitido tomar conta de toda a sua existência.

Era uma tarde de Outono, escura e fria, mesmo ao seu jeito.

O frigorífico vazio obrigava a uma ida ao supermercado pelo que aproveitou a energia de um café, tragado num só gole na mesa posta para jantar. Há cinco anos que a esperava para jantar, sentando-se sempre no mesmo lugar.

Dirigiu-se para a porta, alcançou as chaves do carro que inanimadamente se deixavam ficar no prego que haviam comprado na viagem a Itália.

A inscrição “La Città” prendia-o sempre alguns segundos relembrando com saudoso carinho a cara da vendedora ambulante a tentar perceber se estavam a tentar regatear ou a gozar com ela.

Sorriu e saiu.

Quando ela andava era como se arrastasse o peso do mundo consigo e tão graciosamente quanto possível deslizava sibilantemente como se todo o tempo parasse para que não houvessem distracções desnecessárias. Era como se retirasse prazer em cravar os saltos na calçada, lenta e elegantemente, passo após passo.

Várias noites sentado na sacada com uma garrafa do vinho italiano que ela gostava, apesar de ser demasiado frutado para o seu gosto, à espera de a ver chegar simplesmente para poder observar à distância aquela mulher, fizeram-no perceber como aquele andar tinha tanto de calmante como de deliciosamente inquietante.

Os chuviscos surpreenderam-no. Entrou no carro e dirigiu até ao supermercado que ficava duas ruas abaixo.

Antes gostava de fazer compras, era sempre divertido e nunca igual, sempre que iam os dois como duas crianças excitadas de passo acelerado, pelos corredores à procura dos preços mais baratos, de um novo sabor ou simplesmente daquelas coisas que sabiam que o outro gostava.

Agora muito raramente conseguia retirar prazer de uma tarefa tão rotineira como abastecer o frigorífico.

Através da janela do supermercado viu-se reflectido e achou que era altura de um novo corte de cabelo e definitivamente de uma novo guarda-roupa.

Adiou a ida às compras e como se movido por uma estranha força positiva sentiu a ansiedade que durante tanto tempo o tinha acompanhado mudar de intensidade. Era como se esta fosse a demanda da sua vida.

Esboçou um tímido e disfarçado sorriso enquanto pensava em como iria explicar à cabeleireira o que pretendia.

Subiu os vários andares nas escadas rolantes que ficavam mesmo no meio do centro comercial, pelo que permitiam uma vista panorâmica de toda a azafama de uma sexta-feira à noite.

As crianças a correrem desenfreadas em direcção ao cinema, os aprumados vendedores a tentarem fechar mais uma venda, as senhoras da limpeza a tentarem em tempo recorde deixar mais uma mesa limpa de restos de comida e copos vazios, varrendo a área com um olhar cansado e gasto, um jovem grupo coral enchia as alas com joviais cantos adaptados de grandes êxitos de outros tempos, fizeram-no perceber do mundo em que vivia. Naquele momento percebeu ingenuamente de que havia vida para além da rotina diária casa-trabalho. Percebeu o tempo que tinha perdido à espera de algo que sabia ser impossível de acontecer.

Desde o dia em que a perdeu tinha-se fechado num estranho mundo letárgico em que as muralhas de tão altas não deixavam ver que um mundo colorido e interessante, em constante movimento acontecia mesmo ali à sua porta.

Desde o dia do acidente que não se tinha permitido experimentar simples prazeres que outrora de tão banais haviam perdido o significado. Estava agora a redescobrir-los com agradável perplexidade.

Saiu da escada e debruçou-se sobre a varanda. Sentiu a falta dela. Lembrou-se do dia anterior ao do acidente de terem discutido à porta da bilheteira qual o filme que iriam ver.

Uma comédia romântica tem sempre o seu lugar numa quinta à noite.

posted by Mike at 11/20/2005 10:13:00 da tarde

4 Comments:

Big Mac


O Acaso e o Google me trouxeram aqui.


Deliciosamente...



Assim como teu personagem, também tenho uma árvore assim. Cheia de talhos e feridas, mas resiste.

A ousadia move o mundo.

Abraços, flores, estrelas.

6:26 da tarde  

Tens história. Limpa até aqui. A continuar (sim, gostava que continuasses) partindo daqui.

"E durante demasiado tempo nunca ninguém se apercebera da luta constante que era sair da cama e fingir ser alguém que não era." - A verdade dentro da ficção.

Adoro o remate: " Uma comédia romântica tem sempre o seu lugar numa quinta à noite."

**

P.S – É uma terapia “viciante”, não? Oh, como é evidente.

12:43 da tarde  

Queria apenas ter o dom da palavra e juntamente com ele ter a força de gritar toda a ira e toda a dor que às vezes se apodera de mim mesma ...mas eu não sei como faze-lo ... nem tão pouco sei como transformar as palavras em flechas que ferem, em abraços que envolvem, em leves toques que prevalecem...
Tem sido uma presença constante a ausência de coragem para me fazer ouvir...a coragem de gritar baixinho no ouvido de alguém que a sua presença fascina-me e envolve-me como os abraços das palavras que ainda não te dei...

As palavras têm este dom...o dom de se fazer ouvir, o dom de fazer chorar, o dom de omitir, o dom de acalmar, o dom de fazer sorrir...o dom de abraçar as palavras de outra boca, sem que seja necessário um beijo as unir para se poderem tocar...

As tuas palavras...fazem-me sonhar*

Caramelinhos doces...

5:43 da tarde  

vim cá ter..não sei como, mas gostei de ler.te
voltarei
jocas maradas

10:48 da tarde  

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