XX - XY

segunda-feira, maio 15, 2006

Despertar

Falava com ela, sozinha, para ela, disse que esperava agora que o mundo acabasse, que tudo terminasse para que pudesse começar outra vez. Começar de novo era tudo o que queria e mesmo sem saber já havia começado uma nova vida, um novo capítulo numa existência marcada pela violência e pela agressão que no seu corpo tinham deixado as marcas de dias negros só porque sim.

Na janela uma planta artificial coloria um quarto aborrecido povoado por uma cama e um espelho partido, toscamente equilibrado na parede como que a lembrar que existe um outro lado para onde se pode sempre olhar.

A noite passada tinha comprado um vaso de plástico com terra artificial, com uma planta artificial e tinha-a colocado na janela. Com as mãos trémulas e rasgadas pelas cicatrizes ajeitou a terra, artificial porque uma planta artificial não precisa de terra verdadeira e rodou o vaso à procura do melhor ângulo para que da cama pudesse olhar a sua planta que como ela de artificial tinha só a capa. E rodou o vaso mais vezes que o necessário até desistir.

Apressou-se a deitar na cama desfeita e com os braços na nuca ficou a olhar primeiro a janela, depois o vaso e depois a planta.

Era rosa e amarela e verde e castanha. As folhas tinham ainda um leve tom cinzento do pó que acumulara durante o tempo esquecido no balcão da loja.

-É tão bonita - pensou para consigo enquanto lutava contra o cansaço que três horas de sono podem infligir num corpo frágil.

Adormeceu a pensar em flores de todas as cores e em quartos com camas acabadas de fazer, em lençois frescos e bem esticados. Adormeceu a sonhar com dias melhores.

Acordou com um beijinho e uma voz doce e meiga sussurrava-lhe ao ouvido: - Bom dia Mãe, acorda! Vamos brincar!

-Bom dia filho.

E o dia começava, assim, com um beijo de um anjo que fazia esquecer mais um sonho. O sorriso rasgado e o abraço apertado enchiam-na com mais do que podia perceber naquele momento.

Olhou para a janela e enquanto abraçava o filho pensou – Que planta tão bonita!

posted by Mike at 5/15/2006 10:11:00 da manhã 4 comments

quinta-feira, maio 11, 2006

A espera deixa-me vazio

Lembro-me de um dia, quando era criança, ir no carro com o meu Pai. Acho que regressavamos de casa da minha avó e eu estava de cara colada à janela do carro.
Lembro-me de seguir atentamente a lua à espera de a despistar, sem sucesso.

Lembro-me de passar, impaciente, de um lado para o outro no banco de trás à medida que o meu Pai me levava de volta a casa e a lua parecer saber para onde iamos.

Lembro-me de pensar se a lua saberia onde eu morava.

Lembro-me de perguntar ao meu Pai se a lua “andava”.

Lembro-me do meu Pai responder assim:

-Sabes o balão que compramos ontem?
-Sim – respondi eu
-Pois então, ele está sempre no ar não está?
-Está
-E porque vai ele sempre atrás de ti?
-Porque o amarraste ao meu pulso!
-Assim como o balão, também a lua está amarrada a ti. Só não vês o fio para que os outros meninos não fiquem tristes. A lua é tua e está amarrada a ti, por isso segue-te sempre para onde fores, mesmo quando não a vês ela está sempre ligada a ti.
-A sério? A lua é minha?
-Claro! Ela não está aí?
-Está...

Só nunca disse ao meu pai que o balão da noite anterior estava quase vazio no chão do meu quarto...

posted by Mike at 5/11/2006 01:01:00 da tarde 4 comments

quarta-feira, maio 10, 2006

Pick me up


Um choro de bébé que ecoa na minha cabeça.
Uma imagem de uma mulher de azul. Ou verde claro.
Uma vontade de me sentir abraçado.

É que às vezes eu só quero o que de mais simples existe na vida, o mais fácil e descomplicado. E isso é o mais complicado que se pode querer.

Peguei-a ao colo e segurei-a bem junto a mim.
A bébé não chorou mais essa tarde. Nem riu. Deixou-se ficar ali, a respirar e a sorver com o olhar tudo o que se apresentava à volta dela.

E fui para casa ainda com o eco do choro da bébé, mas ela já não chorava!

posted by Mike at 5/10/2006 07:04:00 da tarde 1 comments

DreamCatcher


Era dia, o sol beijava o alto da manhã e eu senti o chão tremer.

Não eram bem saudades e o anglicanismo não me permitia sentir um “I miss you”, mas mesmo assim tomei banho, vesti-me e enfrentei as horas que tinha pela frente. Abri a porta e enchi os pulmões com o ar que era um misto de odores de pequeno-almoço e detergente.

Esperei o que penso terem sido quatro segundos, voltei-me e tranquei a porta com 2 voltas de chave. Carreguei no botão que avisa o elevador que tenho que descer e dois pisos depois aí estava ele, timidamente aberto à minha espera. Entrei sempre de olho no espelho enorme e ajustei a gravata e a camisa, ritual diário e o elevador deixou-me como combinado na garagem.

Abri o carro e sentei-me, uma volta na chave e já o combustível queimava, poluindo o ar. Ligo o rádio e o concerto que tinha ficado a meio na noite anterior, continuava agora com a mesma intensidade. Baixei o volume, porque concertos de manhã ouvem-se baixinho.

Engreno a marcha-atrás e abro a porta da garagem com mais força do que o habitual, porque a pilha do comando já cansada não tem força e o portão é pesado.

Saio e enfrento o sol. Apresso-me a colocar os óculos de sol para o enganar e esconder-me por mais um bocadinho no escuro.

Tento imaginar que por detrás do céu azul escondem-se também as estrelas, os cometas, os satélites e os estraterrestres que só passeiam de dia porque ninguém os vê.

Percebo que já quatro dos meus sentidos acordaram e páro no sinal vermelho. Ri do homem do tempo que anunciava ontem céu muito nublado e pergunto-me se esta manhã andará de guarda-chuva ou casaco.

Já vi de tudo.

Alheio ao sinal que já verde fazia soar as buzinas dos carros atrás de mim, acordei pela segunda vez e iniciei a marcha do meu carro. Embraiagem, primeira, embraiagem, segunda e lá fomos os dois adormecidos e preguiçosos pelo único caminho que nos era permitido e com uma sensação de injustiça embraiagem, segunda, travão, embraiagem, terceira.

Devia ter vindo de comboio, ou autocarro, ou táxi. Não existem comboios aqui. Hoje, com este “I miss you” a música da Jewel que entretanto substituiu o concerto sabe-me especialmente bem. “I’m leaving on a jet plain and I don’t know when I’ll be back again”

E chegamos seguros e confortáveis, dadas as circunstâncias a mais um dia de trabalho. Deixo o carro onde ele pode dormir por mais umas horas e desligo-me de mim para poder produzir.

Entro pela porta grande que dá acesso a um hall com mais mármore do que era necessário e lentamente vou cumprimentando as pessoas que se me cruzam.

Ainda falta tanto tempo para te poder abraçar...

posted by Mike at 5/10/2006 10:55:00 da manhã 1 comments